domingo, 20 de setembro de 2020

Os amigos da Sabedoria


E se eu dissesse que todo homem tem vocação de filósofo? Em um primeiro momento, com certeza isto soaria estranho. Mas vejamos bem se não é verdade. Filósofo significa amigo da sabedoria, etimologicamente e sabemos pela fé que todos os homens são chamados a serem cristãos batizados e viverem como tais o que, em outras palavras, significa serem chamados a serem amigos de Cristo. Ora, não é Cristo a Sabedoria encarnada? Logo, todos os homens são chamados a serem filósofos.

A vocação última do homem é intelectual. Toda criatura se realiza plenamente quando exerce perfeitamente o seu fim, quando faz perfeitamente aquilo que está de acordo com sua natureza. O homem, sendo um animal racional, deve que ter como vocação última algo que envolva seu intelecto e, de fato, tem: todo homem é chamado a ser filho de Deus não só na Terra pela graça, mas, principalmente, no Céu pela glória de Deus, pela qual ele contemplará e conhecerá Aquele que é tal como é. No Céu, o homem contempla a própria essência de Deus, não só os pequenos reflexos que encontramos nas criaturas e que já nos maravilham tanto. Tudo aquilo de bom que encontramos sobre a face da Terra é reflexo Daquele que é o Sumo Bem. Qual não será então a felicidade dos bem-aventurados, daqueles que já estão gozando desta contemplação? Isto nos deve encher de esperança e nos fazer encarar a morte não como algo terrível, mas como uma bela passagem para a vida eterna. Deve, também, nos lembrar de nos prepararmos constantemente para ela enquanto vivemos, através da oração, das boas obras, da fuga do pecado, da recepção dos sacramentos. A morte deve ser para os cristãos como que a linha de chegada de uma longa maratona corrida com muita felicidade, onde nós encontraremos o troféu que recompensará todo o nosso esforço. Infelizmente, para aqueles que não buscam seguir a Cristo, para aqueles que vivem para o pecado, a morte acaba sendo como um abismo para o qual são arrastados ao longo da vida, não importa o quanto eles tentam fugir, se segurar, resistir; o abismo sempre acaba vencendo e eles são caem nele por toda a eternidade, se não procurarem a reconciliação com Deus. 

Engana-se quem pensa que a filosofia é simplesmente uma série de abstrações e ideias que não servem para nada a não ser para ocupar o tempo e gerar um pouco de prazer intelectual. Não! A filosofia, a amizade com a sabedoria, é um agente transformador de nossas vidas. Que pobre o conceito de uma filosofia que só se preocupa com aquelas questões distantes e abstratas... A filosofia verdadeira nos diz qual é a vida boa e nos prepara para a morte! Vejam Sócrates perto da morte no Fédon de Platão. É um homem felicíssimo! Não teme de modo algum o destino que o espera. E Nosso Senhor, o maior filósofo de todos os tempos, como alguns dizem: foi atacado pelos temores próprios de um homem, que de fato é, mas se entregou por todos nós. Não fugiu da morte, mas a encarou e a venceu, ressuscitando. Vejam também os santos, sejam doutos ou não: na hora da morte estavam tranquilos. Alguns mártires chegaram até a rir de seus algozes enquanto queimavam. Digo que todos eles foram filósofos no sentido em que estamos falando.

Está bem claro que a vida filosófica, a vida cristã nos faz encarar a morte com muita tranquilidade, pois nos reserva um prêmio por nossos esforços e sofrimentos suportados na Terra. Mas e quanto a maneira de encararmos a vida? Quando falamos da morte com esperança de algo melhor que esta vida e como recompensa pelo que fizemos nela, às vezes podemos causar a impressão de que esta vida deve ser triste e amarga para que a próxima seja alegre e doce. Terrível engano! Isto é o que afasta muitos do caminho da salvação, infelizmente: acham que a vida cristã é uma vida triste... Nossa vida deve ser muito sofrida, é verdade, pois temos que tomar nossa cruz e seguir. Mas, nesta vida nosso fardo não é pesado e nosso jugo não é duro, porque são os de Cristo, que tem o fardo leve e o jugo suave. O filósofo que se prepara todos os dias para morrer é, na verdade, aquele que melhor goza da vida. A vida que temos aqui deve ser um antegozo do Céu. Aqui, como batizados, já possuímos a Deus em nossos corações e já podemos, de certa forma, contemplá-Lo em nosso interior, sem falar na Eucaristia, pela qual nos unimos de maneira ainda mais íntima ao Verbo divino. E na Terra, quando agimos "com verdade", como falava São João Paulo II, somos felizes. Este agir com verdade é agir conforme a Verdade, configurando-se a Cristo através de nosso abraço aos valores éticos objetivos que estão na mente de Deus desde toda a eternidade. 

Por isso, não precisa se preocupar em de fato estudar filosofia aquele que tem outro plano para a própria vida, embora isto fosse algo bom de se fazer, se puder. Quem não puder ou não quiser ser filósofo no sentido mais estrito pode ser filósofo neste sentido mais amplo do qual estamos falando neste texto (que é muito melhor que ser filósofo apenas de profissão ou que qualquer doutorado em filosofia), através de uma vida toda conformada à Verdade Divina, ou seja, através de uma vida vivida toda com amor. E coitado do filósofo de profissão, do intelectual que não vê a filosofia como algo para transformar sua vida. Este está correndo o grande risco de ser triste e frustrado, porque o conhecimento sem o amor apenas infla o ego, podendo estourar a qualquer momento. 

Vivamos, pois, segundo a Verdade! Dessa forma, teremos a felicidade já aqui na Terra e depois no Céu! Deus abençoe a todos e que a Mãe da Sabedoria nos ajude a nos conformar cada dia mais ao Verbo divino que nela habitou antes de todo homem!

domingo, 13 de setembro de 2020

Como o homem é, assim será seu amigo

 


"Quem teme o Senhor terá também uma excelente amizade, pois seu amigo lhe será semelhante."

Eclesiástico 6, 17

            O sentido mais próprio, por assim dizer, desta passagem do fantástico livro do Eclesiástico é que Deus recompensa o justo com amigos justos também. Mas não é este o sentido do qual vamos falar hoje em nossa pequena reflexão. Queremos falar, na verdade, sobre a amizade como instrumento de Deus para o justo beneficiar seu próximo. Assim, falaremos sobre a tranquilidade que podemos ter em relação ao nosso testemunho no meio do mundo através das amizades e sobre a responsabilidade que temos de alcançar o máximo grau de perfeição possível, a fim de transbordar aos que estão à nossa volta o Amor que habita em nós.

            Há muitos de nós que se inquietam com a realidade à sua volta por verem tantas pessoas longe de Deus. Esta inquietação, até certo nível, é saudável e até necessária pois, se realmente amamos o nosso próximo, queremos que ele encontre de verdade Nosso Senhor e se salve. Assim, quem tem esta inquietação, tem também o desejo de levar as pessoas para Deus. O problema é quando este bom desejo se corrompe em fundamentalismo, muitas vezes ocasionado por escrúpulos, e a pessoa não consegue ter paciência ou prudência: precisa repreender qualquer um que se vista de modo impudico, que fale algo que não se encaixa em nossa fé ou qualquer coisa, tenta teimosamente convencer os outros da verdade católica a despeito do fechamento dos corações alheios e, ao contrário de sua bela intenção, leva os outros e a si mesmo ao pecado: os outros às blasfêmias, à irritação, assim como ele mesmo se irrita e corre o risco de julgar os outros. Isto acontece por ele, com a melhor das intenções, ter jogado pérolas aos porcos devido à sua imprudência. Nós vemos com frequência coisas assim pela internet, especialmente nas redes sociais, com pessoas empreendendo debates infrutíferos com ateus, abortistas, defensores do casamento homossexual, comunistas, protestantes, etc. Essas atitudes são geralmente tomadas pelos mais jovens que, sem perceber, podem estar encarando a religião como uma simples ideologia a ser propagada e aceita pelos demais, não aplicando corretamente o princípio do amor ao próximo.

Não digo que temos que nos calar perante todas as situações, digo que temos que saber falar e saber calar, saber fazer o que o amor exige naquele momento, como falava semana passada. Às vezes nosso silêncio diante de uma situação pode levar os outros ao escândalo e às vezes é a nossa manifestação que pode escandalizar. O que fazer então? Como saber o que fazer? Não há uma regra pronta, uma fórmula onde nós só precisamos encaixar as variáveis, como na física. Precisamos analisar cada caso real como único e, com confiança em Deus, fazer aquilo que, à luz da doutrina católica e da razão iluminada pela graça, nos parece melhor para a glória de Deus e o proveito dos homens.

Mas por que falar de tudo isso num texto sobre amizade? Porque este é um dos meios mais preciosos para se levar os outros a Deus, que é o objetivo de quem comete os erros que mencionei acima e porque estas questões são fonte de inquietação, ansiedade e escrúpulos para muitas pessoas e gostaria de aproveitar a oportunidade para tentar ajudar um pouquinho àqueles que sofrem com estas dificuldades. Vamos, pois, ao que mais nos interessa.

Vejam: quem teme ao Senhor terá amigos semelhantes a si. Isto quer dizer que, como disse antes, através da amizade, o temor e o amor que temos por Deus pode transbordar àqueles à nossa volta. Isto pode ser algo para confortar os corações daqueles que sofrem dos males de que falamos acima.

Para vivermos isto, devemos ter, primeiro, um grande sentido sobrenatural. Devemos saber que as penitências, os sacrifícios e orações que fazemos pelos outros são ouvidos por Deus. “É impossível de perecer um filho de tantas lágrimas”, foi o que um bispo disse, muito prudentemente, como relata Santo Agostinho, à sua mãe Santa Mônica, angustiada por ele estar envolto na heresia e impiedade. Deus escuta nossas orações pelos outros. Afinal, não está Ele muito mais interessado que nós na conversão do nosso próximo? Não foi Ele quem deu Sua vida na Cruz por todos e por cada um de nós, pobres pecadores? Tenhamos confiança na Sua Misericórdia e rezemos muito por nós e pelos outros.

Depois, é necessário que nosso amor se manifeste concretamente em nossas obras. Afinal, não é a amizade um tipo de amor? Devemos ser, na medida do possível, um Alter Christus para os homens (evidentemente, cada um de acordo com seu estado de vida, sendo os ministros ordenados outros Cristos de maneira essencialmente diferente de nós, leigos), estando ao lado deles não para sermos servidos, mas para servi-los em suas necessidades materiais e espirituais. Esta amizade, este testemunho, faz com que resplandeçamos a Face de Cristo para o nosso próximo, fazendo-o, de certa forma, conhece-Lo. E isto fala muito de Deus, às vezes mais do que as palavras, às quais o coração humano pode estar fechado. Como São Francisco de Assis disse, nossa vida pode ser o único Evangelho que muitas pessoas vão ler na delas. Isto pode confortar os escrupulosos, mas deve também chamar os tíbios à conversão: vejam quão grave é o nosso dever de praticar boas obras, de dar um bom testemunho de católicos! Disso pode depender a salvação das almas e, mesmo que seja só de uma, já não é o suficiente para nos esforçarmos ao máximo por isso, como o Bom Pastor que deixa as noventa e nove ovelhas para procurar a perdida?

Enfim, temos as conversas sobre a nossa fé. As pessoas não viram cristãs “por osmose”. É verdade que o testemunho de um santo pode levar muitas pessoas à conversão, mas devemos estar também sempre prontos para dar as razões da nossa esperança, como diz São Pedro, além de que, no mundo em que vivemos hoje em que nossa amada mãe Igreja é tão maltratada pelos homens, poucos a conhecem de verdade. Como disse o Venerável Fulton Sheen: “sequer cem pessoas odeiam a Igreja: mas milhões odeiam o que acham que a Igreja é.” Por isso, faz-se necessária a nossa formação, para que conheçamos com profundidade a nossa fé, e as conversas com nossos amigos, para que eles também possam conhecê-la de verdade. Claro, estas conversas devem sempre ocorrer com aquela prudência de que falamos acima, isto se a prudência permitir que elas ocorram, pois são muitos aqueles que não têm o coração preparado para receber a verdade e, neste sentido, as nossas orações e o testemunho que damos podem ajudar.

É esta, meus amigos, minha pequenina contribuição de hoje. Se gostaram do que leram e se acham que pode ajudar alguém, compartilhem em suas redes sociais e com seus amigos. Deus abençoe a todos! Que Nossa Senhora nos torne grandes amigos de Cristo e dos homens!

domingo, 6 de setembro de 2020

A única coisa necessária

 


            Depois de um breve período parados, é bom estarmos de volta com os nossos textos! Peço perdão pela ausência durante este tempo. Esta ausência não foi por falta de ideias, tanto que a ideia para este texto estava em minha mente já há algum tempo, mas por dificuldades que encontrei para sentar e escrever. Vamos, então, ao que interessa!

            A maioria de nós já deve conhecer a famosa cena do Evangelho em que Nosso Senhor repreende a agitada Marta e defende sua irmã, Maria, dizendo que “uma só coisa é necessária” (Lc 10,42). O que seria então essa coisa? Digo que é o amor, o amor a Deus e ao próximo em toda a nossa vida e em cada momento dela. Às vezes vivemos uma vida de tantas preocupações que dificilmente nos ocupamos de fato. E às vezes são preocupações não só lícitas, mas boas, como a salvação da nossa alma e a das almas dos outros, ajudar alguém que precisa, fazer alguma obrigação, e tantas outras coisas. O problema é que, se nos deixamos levar por isso, nossa mente fica perturbada e nosso espírito desorganizado: vemos uma imensidão de afazeres e de responsabilidades e não sabemos qual fazer primeiro, então começamos um, paramos e passamos a outro, então voltamos àquele... Assim, nem nosso dia rende, nem nós ficamos saudáveis e a nossa intenção que era servir a Deus não se concretiza. Gostaria de falar sobre isso hoje.

            Disse que é necessário o amor em toda a nossa vida e em cada momento dela. Comecemos pela primeira parte. O que quero dizer com “amor em toda a nossa vida”? Quero dizer que ele deve ser como que um princípio ordenador dela, como que a sua alma. Olhando nossa vida “de longe”, como uma linha cheia de pequenos pontos, devemos pensar no amor como um princípio que une todos os pontos, que os permite permanecer juntos, coesos e apontando numa mesma direção, que é a direção do céu. Assim, todas as decisões que vão moldar esta vida, esta linha, devem levar em consideração o amor e devem deixar que Deus o coloque nela para que ela permaneça uma e harmônica. Todos os nossos planos, os nossos objetivos, as nossas decisões que definem o curso da nossa vida devem ser impregnados de amor, devem ser por amor, com amor e para o Amor. Poderíamos usar uma outra imagem: a imagem de uma orquestra cujo maestro é o amor e a plateia é a Santíssima Trindade. Este maestro deve conduzir todos os instrumentos dando a eles a ordem necessária, mandando-os tocar cada um em seu momento e no devido tom, de acordo com a doce melodia que o maestro quer produzir para agradar a Nosso Senhor.

            Vamos agora para a segunda parte: “o amor é necessário em cada momento de nossa vida”. Se antes nos referíamos ao princípio que ordena a reta que representa a nossa vida, mantendo os pontos coesos, agora nos referimos aos pontos em si. Não adianta termos grandes decisões, grandes propósitos de amar a Deus e ter este princípio ordenador se não damos a ele o que ordenar, se não temos atitudes concretas de caridade. Talvez seja esse o principal ponto para nós hoje. Sabemos todos que o amor de Deus deve ser o nosso Norte, o nosso farol, mas será que, de fato, estamos caminhando para esta direção? Não me refiro aqui às nossas misérias, que são desvios deste caminho e espinho na carne que todos aqueles que amam a Deus têm de sofrer, mas me refiro aos passos concretos que devemos dar na direção que o amor nos aponta. Por exemplo, se dizemos que queremos ser grandes estudiosos por amor a Deus, estamos de fato estudando? Se queremos ser grandes pais, estamos empregando os meios necessários para a educação de nossos filhos nas situações concretas que nos aparecem? É nisso que devemos prestar atenção...

            Agora, se feri alguém com o que acabei de dizer, venho logo trazer o mertiolate, falando ainda do mesmo assunto. Quero falar a todos para que tenhamos muita calma, muita paz e serenidade! Ou vamos acabar sendo repreendidos por Nosso Senhor, como foi Marta, além de desenvolvermos tantas inquietações que pesarão muito em nossa vida. Façamos uma coisa de cada vez. Em cada momento de nossa vida, nos dediquemos ao que o amor nos pede naquele momento. Se vou rezar, que fiquem para lá os estudos, as contas a pagar, até os pecados! Não digo que estas coisas não devem aparecer na nossa oração, porque devem! Mas elas não podem ser o centro. A oração é nosso doce momento de encontro com Deus, é a parte do dia em que buscamos contemplar a Face daquele que nos habita. Não devemos ficar olhando para outras coisas, mas apresentá-las diante de Cristo, com quem estamos conversando. Assim também, quando formos estudar, não podemos pensar naquilo que estudamos e rezar vocal ou mentalmente ao mesmo tempo. Neste caso, devemos oferecer as nossas obras a Deus e nos concentrar nelas, podendo, claro, fazer pausas para contemplá-lo, mas lembrando que aquele é o momento do estudo, do trabalho, que é também importante para Deus, logo merece toda a nossa atenção.

            Voltando à imagem da orquestra, o maestro Amor ordena que cada um dos instrumentos toque a nota certa, no tom certo, no momento certo. Se a flauta tocar na hora do violão ou tocar a nota errada na hora certa, a música vai desagradar aos ouvidos! Por isso, necessitamos, em nossa vida, de ordem, de harmonia para poder amar.

Unidade, harmonia. Uma só coisa é necessária em toda a vida e em toda ela. O amor é necessário em toda ela e, em cada momento, aquilo que o amor exige nele é necessário. O amor harmoniza, unifica todos os instrumentos da orquestra da vida cristã. Ao mesmo tempo, ele exige que sejam feitas coisas tão diferentes e que sejam cada uma a seu tempo: cada músico com seu instrumento e cada instrumento no correto momento da música do amor divino. Não posso fazer tudo ao mesmo tempo, ou a música soará terrivelmente mal. Ao contrário, cada coisa no seu tempo para uma melodia agradável a Jesus.

Deus abençoe a todos! Obrigado por lerem até aqui! Que Nossa Senhora nos ajude a termos ordem em nossa vida!

São José na Sagrada Escritura

  São José é mencionado nos Evangelhos apenas 14 vezes, em cerca de 43 versículos (Mt ...