domingo, 2 de agosto de 2020

Filiação divina


            “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus.” Assim começa o Evangelho segundo São João. O Verbo, nós sabemos, é o Filho de Deus, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, que se encarnou, tornando-se homem como nós. A palavra verbo tem três significações próprias, segundo Santo Tomás: o conceito interior da mente, a palavra proferida significativa deste conceito e a imaginação da palavra, sem ser proferida. Deus, eternamente e num mesmo ato, é e se intelige e esta intelecção gera o Verbo subsistente e da mesma natureza do Pai: é o Filho de Deus, que é também Deus.

            Peço perdão por este início um pouco mais complicado de se entender, mas acredito que possa ser construtivo para nossa reflexão de hoje. Queremos falar da nossa filiação divina e da sua grandeza, da excelência que é ser filho de Deus e, para isso, é bom que ao menos possamos contemplar, com todo o nosso limite e de maneira imperfeitíssima, como se dá a filiação na Trindade, porque, já adianto, é desta filiação que, pelo Batismo, participamos.

            Há diversas maneiras de se ser chamado filho de Deus. De certa forma, todas as criaturas podem ser chamadas filhas de Deus, por analogia de criador-criatura. Mais propriamente o homem, por ser naturalmente imagem de Deus, pode ser chamado desta forma. Mas, pelo Batismo, nós somos inseridos no Corpo de Cristo e temos uma filiação divina ainda mais perfeita que a de Adão antes da queda: somos filhos no Filho de Deus, participamos da maneira pela qual o próprio Cristo é Filho do Pai. E isto é muito grande. Isto é, para nós batizados, objeto de um certo santo orgulho, de grande complacência. O Pai nos adotou como filhos! Deus, o criador de todas as coisas, nos olha como um pai olha seu filhinho pequeno, só que com muito mais amor e muito mais zelo, porque o Pai é infinito. Que grandeza! Como somos grandes! Temos um Pai que nos ama infinitamente!

            Esta filiação deve como que brilhar em nós através do testemunho de nossas vidas, especialmente pela confiança que depositamos no nosso bom Pai Deus. Se eu sei que Deus é meu Pai e que Ele me ama com amor infinito, não tenho motivo para perder a paz ou a alegria em meio aos sofrimentos. Não é para sermos robôs ou anjos que não sofrem ou que não são afetados por nada. Mas, em meio as lágrimas que as circunstâncias de nossa vida possam nos provocar, devemos estar com o coração confiante em Deus. Cristo sofreu e muito na Terra. O vimos chorar por Seu amigo que morreu, por Jerusalém e sua falta de conversão, o vimos cheio de angústia ao saber que estava próxima Sua Paixão, sem falar nela mesma, mas Ele nunca desconfiou da bondade de Deus, nem se entregou ao desespero. Enquanto as partes mais baixas de Sua alma sofriam amargamente, a mais alta tinha uma alegria que nós só vamos conhecer no Céu, e ainda muito imperfeitamente. Assim, imitemos ao Filho de Deus perante as tribulações de nossa vida, porque participamos desta filiação também, para a honra e glória de Deus e para o nosso próprio bem, porque não tem dor pior que a do desespero.

            Alguns de nós, porém, não sofrem por circunstâncias externas, mas internas e essas são, de fato, as mais difíceis de se enfrentar. Às vezes os nossos próprios pecados nos causam um peso tão grande que queremos desanimar, que nos entristecemos ou nos irritamos. O segredo é ainda a confiança em Deus. Ele está sempre pronto para perdoar-nos e não devemos temê-Lo e nem o sacramento da Confissão, que é um tribunal de misericórdia, porque se Deus sofre pela ofensa proferida contra Ele, sofre muito mais por estarmos distantes Dele. Devemos olhar para nossas misérias com extrema confiança e humildade, mas não uma humildade fria e triste, que é muito mais um orgulho mascarado. Não: o verdadeiro humilde fica em paz com sua própria miséria, pois não espera muito de si, conhece sua incapacidade. Não quer dizer que não sofra, mas sofre como que em paz. Assim, nem os nossos pecados devem nos tirar a alegria e a paz próprias dos filhos de Deus. Santos mesmo só o seremos no Céu. Não sejamos, com o perdão das palavras, tão mimados e birrentos ao ponto de, diante de tantas graças e de tantos privilégios recebidos da Providência, como a própria filiação da qual estamos falando e mesmo o estado de graça que os nossos pecados veniais não podem nos roubar, ficarmos tristes e emburrados com as circunstâncias exteriores e interiores, como uma criança que ganha um maravilhoso bolo de chocolate de aniversário, mas se entristece pois a cereja não está bem no centro.

            Sejamos homens e mulheres simples e conscientes da nossa grandeza e da nossa miséria, sem deixar que esta encubra a alegria proporcionada por aquela. Vivamos segundo a nossa condição de filhos no Filho de Deus, imitando cada uma das suas pequenas atitudes. Assim, termino este pequeno texto. Espero ter colocado nas mentes dos meus leitores pelo menos um pouquinho da alegria e da paz que me vêm de saber que sou filho de um Pai tão maravilhoso. Que Nossa Senhora, Nossa Mãezinha aumente em nós a consciência da filiação divina e da filiação que temos para com ela. Deus abençoe a todos!


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