domingo, 17 de maio de 2020

O outro, dom de Deus



A nossa vida cristã traz consigo muitas responsabilidades. Precisamos rezar, ir à missa(que também é rezar), lutar contra o pecado, criar um laço de amizade com Nosso Amado Jesus e buscar que o próximo faça o mesmo. Todas essas coisas devemos fazer sempre com um espírito sobrenatural, com a intenção de agradar a Deus em tudo, com muita caridade. Nós sabemos, porém, que as circunstâncias são, às vezes, difíceis para nós e nos tentam a enxergarmos as nossas responsabilidades para com Deus e com o próximo como um  peso. Venho aqui hoje falar contra essa tentação. Jesus nos convida a carregar seu fardo leve e seu jugo suave. Portanto, a vida de discípulo de Cristo não combina com fardos impossíveis de se carregar. Uma coisa que pode nos ajudar muito a tornar tudo mais leve é esforçarmo-nos por enxergar tudo e todos como grandes presentes de Deus: a Eucaristia, os santos, a Trindade, os homens que nos cercam e mesmo as tribulações.

É importante recordarmo-nos sempre do amor de Deus por nós e de que sua providência é sempre uma maneira amorosa de conduzir as coisas. Assim, tudo o que nos acontece ou nos aparece, absolutamente tudo, Deus o quer ou o permite por amor a nós, porque Ele quer, com aquela pessoa, com aquela situação, nos fazer bem. A própria Bondade não consegue agir senão gerando, propagando o bem e isso nos chama a nos sentirmos amados por Ela a todo momento, em cada situação e em cada pessoa. Devemos enxergar a nós mesmos e aos que nos cercam como grandes presentes de Deus, para nós mesmos e para os outros. Nossa busca de santidade, na verdade, consiste em se tornar a cada dia um presente mais valioso a Nosso Senhor e aos nossos irmãos e nos doar como verdadeiros presentes a eles. Mas é muito interessante também, e é esse o escopo de estarmos aqui hoje, enxergarmos o que está fora de nós como dons, como presentes para nós. Quem é que não cuida bem das próprias coisas? Quando ganhamos algo precioso como um carro, um celular, um objeto de valor, sempre o cuidamos bem (ainda mais se quem nos deu foi alguém que nos ama muito). Assim, devemos ter um zelo muito terno por toda a criação, especialmente pelas pessoas, criaturas mais preciosas de Deus e por Jesus, maior presente de Deus Pai para nós, que veio viver conosco e continua vivendo na Eucaristia, doando-se todos os dias por nós, atualizando Seu sacrifício na cruz.

Quando enxergamos o que está fora de nós como presentes de Deus, como algo feito para nós, fica difícil não nos envolvermos com aquilo. Às vezes, a tentação do peso é um certo orgulho que quer olhar tudo de cima, que não quer abaixar-se aos outros para ajudá-los, para cuidar deles, para se envolver com eles. Pode-se pensar: "quero amar somente a Deus e todas as outras coisas só por causa dele. Tudo quero amar só por causa de Deus. Então, não posso deixar que meus afetos sejam dados as criaturas, porque só Deus tem direito a eles. Não posso me permitir envolver-me com elas." Isto é um erro. De fato, o maior afeto, o maior amor, se deve somente a Deus, porque a Ele nós amamos sobre todas as coisas, sobre todas as criaturas. Mas nosso amor caridade deve ser uma participação do amor divino, e este amor divino não tem medo de se envolver com as criaturas. Não tinha Jesus a São João, a quem Ele permitia que encostasse a cabeça em seu peito e escutasse as batidas do Seu Sagrado Coração? E não quer ter a nós e a toda a humanidade? Nosso Senhor anseia nós. Ele nos quer perto de si. É natural, ou melhor, sobrenatural que nos preocupemos com os homens, que nossos afetos sejam estendidos a toda a humanidade. Quando Jesus viu a multidão com fome, o que aconteceu? Ele fez uma reflexão teológica, indo de premissa em premissa até ver que o correto era que desse de comer àquelas pessoas? Não. Ele sentiu compaixão.(Mt 14, 14) Não tenhamos medo de sentir compaixão também, não tenhamos medo de sentir afeto, prazer pela companhia de alguém, até certo apego. O que não deve haver em nós é um apego desordenado às criaturas, não qualquer apego. 

Há, de fato, uma grande tendência ao sentimentalismo na nossa época, que diz que "o importante é se sentir bem". Não é esse, de fato, o mais importante. É importante é Cristo e a vivência do Seu amor, como diz um grande padre conhecido diante de afirmações semelhantes. Mas é humano sentir e Deus fala a todo o homem, não só à sua inteligência e à sua vontade. A insensibilidade não é uma virtude, mas um vício, então temos que tomar muito cuidado para não cairmos nela. Lembremo-nos do que Deus disse a Israel: "tirarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei um novo coração de carne."(Ez 36, 26) A nossa conversão não consiste em deixarmos de ter sentimentos e paixões, mas em ordená-los segundo a Vontade de Deus. Claro, se eu sinto algo que vai contra os mandamentos, a Vontade de Deus, tenho que lutar para não consentir naquilo, mas não quer dizer que nossos sentimentos sejam maus em si, muito pelo contrário: são criaturas de Deus e devem ser queridas por nós. Assim, devemos nos permitir sentir afeto por Deus e pelos homens, se de fato os enxergamos como bens e nós os enxergaremos como bens se de fato os amamos. De fato, o amor é um ato da vontade. Mas a prática do amor autêntico, com o tempo, vai elevando a Deus também os nossos afetos, os nossos sentimentos e tudo o que há em nós. Afinal, devemos amar a Deus sobre todas as coisas, com todo nosso ser, com todo o nosso entendimento, com todas as nossas forças, com toda a nossa alma e com todo o nosso coração(Lc 10, 27). E este coração é o mesmo com que amamos a nós, ao próximo e às outras criaturas.

Sem essa noção de dom, de preciosidade, da grandeza do outro, fica muito difícil conseguir viver bem o cristianismo. Fica muito difícil crescer tanto na caridade para com Deus, quanto para com o próximo e para com nós mesmos. Pois se não enxergo a preciosidade dos homens, que são imagem de Deus, muito dificilmente será Deus precioso para mim. Se não enxergo Jesus como meu precioso amigo, fica muito difícil fazer oração, adorar e fazer penitência  com amor. Tudo isso vai parecer uma multidão de atos unicamente de justiça, de um "vejo que este é o certo, portanto o faço." Isso é tudo válido, é tudo lícito. Não é pecado. Mas é um amor muito imperfeito ainda. Temos de nos esforçar para ultrapassar isso. Temos de nos esforçar para rezar sabendo que Deus nos espera e que conversarmos com Ele o agrada muito. Precisamos tentar dar esmola porque queremos que aquela pessoa tenha seu alimento, que ela possa comer; tentar levar Cristo aos homens porque eu sei que Ele é o maior bem que eles podem ter nesta vida e na outra, o único modo de serem felizes. Tenho que me esforçar para que minhas boas obras não sejam feitas simplesmente porque são minha obrigação. Temos de nos esforçar para amarmos desinteressadamente. E essa perspectiva de dom pode nos ajudar a isso, para nos colocar junto com o outro, ou até abaixo dele. Porque, como disse antes, há um certo orgulho em não se permitir ter afetos pelo que está fora de nós, um certo egoísmo também. Se não encaro a oração como uma graça que Deus me concede, um presente que Ele me dá de se dispor a me ouvir, vai parecer, na verdade, que, quando faço oração, estou dando esmolas a Ele. Assim com nosso próximo. Vai parecer sempre que sou um superior dando migalhas a um inferior quando não deve ser assim, pois somos irmãos, ou somos ao menos chamados a sê-lo, se um de nós não for batizado. Mas a questão é somos iguais. Se já é problemático isso com o próximo, que dirá com Deus, que é a fonte de todo o bem, que é o Governante Supremo do universo, de quem somos pobres filinhos? Muito amados, é verdade, mas muito pobres também. Temos que ter espírito de pobreza, de humildade: não somos nada. A oração é para nós fonte de graças das quais necessitamos absurdamente para a mínima boa ação, para o mínimo bem. As boas obras são formas de cuidar daqueles preciosos dons que Deus nos deu, os homens, além de serem também fonte de graças para nós, fonte de santidade. 

Evitemos, irmãos, o orgulho e o egoísmo. Lembremo-nos da nossa pequenez, da nossa miséria, do quanto somos necessitados de Deus e até das criaturas, pelas quais Deus nos distribui graças. Aquele velho ditado da vovozinha, que a gente tende a achar que é besteira, é muito sábio, na verdade: precisamos até do capim da rua. Não podemos desprezar nada nem ninguém... Evitemos também o excessivo fechamento em nós mesmos. Deus, que é Ele mesmo grande dom para nós, e os homens querem ou precisam do nosso amor, apesar de pequeno e pobrezinho. Lembremos sempre, também, que somos nós mesmos dons de Deus para nós e para os outros e devemos nos amar muito, apesar de nossa miséria, porque Deus também nos ama. Deus abençoe a todos! Um bom domingo e uma boa semana!

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